sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Bola Àparte

"Signor Fellini vogliamo lavorare seriamente?"




Vou continuar no cinema, mas para a semana prometo política. Mas não podia deixar de falar disto. Depois de uma longa espera que conseguiu exasperar o mundo cinéfilo, saiu finalmente o “Livro dos Sonhos” de Federico Fellini. Largamente anunciado após a sua morte, em 1993, não teria sido publicado mais cedo por dissensões entre os diversos herdeiros do mestre – que só posso imaginar como uma matilha de rapaces da pradaria, secundados por uma horda de advogados, a rasgarem com os dentes a presa fácil que foi o enorme legado deste gigante do cinema (e da arte, e do mundo, e de tudo, e da constante emoção tragicómica que é a vida... Desculpem, mas quando se trata deste senhor não consigo deixar de cair na panegírica).

Este livro combina dois volumes, que até agora tinham estado fechados num banco em Rimini, cidade natal do realizador, foi finalmente comprado pela Fundação Fellini, até à data bem presidida por Vittorio Boarini. Os objectos foram avaliados em cerca de 750 mil euros e não terá sido menos que os ditos abutres levaram para casa. Quem, como eu, tem na sua imagética a presença regular e fantasmagórica do cinema de Fellini, em todas as suas singelas e monstruosas facetas, até ao ponto de quase não conseguir exprimir o livre curso da sua imaginação sem recorrer à gramática felliniana, achará esta quantia quase insultuosamente baixa. (Alguém tem prestado atenção ao mercado da arte nos últimos tempos? O artista inglês Damien Hirst vendeu um total de 125 milhões de dólares no seu leilão na Sotheby’s. O homem é bom, e eu gosto de animais conservados em formol tanto como o próximo, mas isto é obsceno!)

“Il Libro dei Sogni” é o registo em desenhos e letras, feito pelo próprio realizador (que em jovem queria ser pintor), dos seus sonhos, feito sistematicamente, logo depois de acordar, começando nos inícios da década de 60 até aos anos 80, altura em que o seu cinema se afasta marcadamente da influência neo-realista de Rosselini para se lançar num consciente e simbólico onirismo. Esta sua iniciativa dever-se-á à terapia de psicanálise junguiana a que o realizador nesta época se entrega, com o famoso psiquiatra Ernst Bernhard. São mais de 500 páginas de descrições e desenhos com canetas de feltro que aqui vemos facsimilados, a abertura directa para uma das mais fascinantes psiques que o cinema jamais nos revelou. Vemos as suas personagens, arquétipos e colaboradores a fazerem aparições constantes no palco do seu subconsciente; as suas mulheres, nas suas diversas formas –a mãe e a prostituta, a inocente e a lúbrica, as gordas e as elegantes – tanto lhe preenchem os sonhos, como o perseguem em pesadelos. Loren, Mastroiani, Visconti e a belíssima Claudia Cardinale estão lá também, assim como o Papa João Paulo II (que, enquanto cardeal se ha havia insurgido contra o niilismo de “La Dolce Vita”) que sobe num balão com o realizador para verem uma beldade do tamanho de um dirigível, de cuja respiração derivam as nuvens. Em criança, Fellini deu o nome de quatro salas de cinema aos quatro cantos da sua cama, e para ele “o espetáculo começava assim que fechava os olhos”. É um privilégio ver assim os sonhos de um sonhador profissional. Trata-se da maravilha do fantástico, da emoção vital mesclada com o real pelos insondáveis processos de reajuste da memória humana durante o sono do mestre. Trata-se do maravilhoso e É MARAVILHOSO!


Por: Francisco Adão

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